*Por José Américo Castro
Ele nasceu na zona rural do município de Ibirataia, morou na Rua dos Artistas e ganhou fama tocando no Carrapato, antiga zona boemia desta cidade. Aos três anos de idade ficou cego e na velhice contraiu diabetes, doença que contribuiu para que tivesse a perna esquerda amputada.
Em sua existência tiveram muitos outros contratempos, mas nada disso lhe impediu de ser feliz. De nada reclama, desconhece depressão, valoriza a vida e está sempre agradecendo pelo dom que Deus lhe deu. Os dedos deslizam nos teclados, a mão puxa o fole com precisão cirúrgica. O som ecoa na vastidão.
Carlinhos, o ceguinho sanfoneiro estende o olhar vazio, enxerga além, pelo sentimento, com a luz que vem de dentro do seu espírito, com a essência do existir.
Manoel Carlos Rodrigues Santana, “Carlinhos da Sanfona”, tem 68 anos, e por força das circunstâncias deixou de animar festas, farrear até o dia raiar. Emendar com a próxima noite e continuar tocando, como já fez inúmeras vezes no cumprimento do oficio, atendendo pedidos de amigos, cumprindo a missão que lhe foi dada pelo destino.
Atualmente vive em um quarto da casa da sua sobrinha Nilzete, na Fazenda Palestrina, interior de Ipiaú. Quando não está ouvindo as emissoras de rádio ou o canto dos pássaros que existem no lugar, recorre à velha sanfona e se revaloriza.
Evoca lembranças, reconstitui sua história. Recorda de como foi conduzido à musicalidade, dos primeiros instrumentos, de quem tocava com ele, de quem lhe foi generoso, dos eventos onde reinou.
Filho do trabalhador rural Antônio Rodrigues dos Santos e Lenita de Ventura Santana, o menino Carlinhos foi criado por seu tio e padrinho Dionísio Ventura, proprietário da Fazenda Várzea Grande, em Ibirataia.
Seu primeiro instrumento foi uma gaita. No sopro criou intimidade com os acordes e assim acordou para a musicalidade.
Observando o talento do garoto, um outro tio, Manoel Paulo de Souza, apelidado de “Manezinho Cesário”, lhe presenteou com uma sanfona de 24 baixos. Sua vida ganhou mais animo a partir daquele momento.
Sozinho, sem nenhum professor, ganhou intimidade com as teclas, botões e o fole. Aguçou os ouvidos e captou o que o rádio transmitia de Luiz Gonzaga e outras feras da música nordestina.
“Meti bronca e nunca mais parei. Fui morar na Rua dos Artistas e não demorou muito tava tocando numa boate no Carrapato, junto com Dario, no tamborim, Railton, no pandeiro e Natan, no triangulo”, recorda o instrumentista. Carlinhos conta que André Soares, afilhado de seu Anjo, dono da boate, era quem arranjava as apresentações.
A fama foi crescendo e Carlinhos recebendo convites para fazer a festa em outros lugares. Comandou a folia em aniversários, escolas, comícios, eventos escolares, casamentos de ciganos e outros arrasta-pés.
Não demorou muito para o fazendeiro Péricles Thiara descobrir seu talento. Levou o sanfoneiro para forrozar na região do Guloso e batizou o grupo de “Seca Budega”.
Teve uma vez que Péricles desafiou Carlinhos a tocar sem parar por quanto tempo fosse possível e prometeu que se o musico superasse a expectativa lhe daria um prêmio. O tocador topou a parada e venceu.
“Puxei o fole durante 16 noites encarriadas e ganhei uma sanfona de 80 baixos. Com ela fiz muito sucesso”, assegura Carlinhos.
Durante o desafio ele só parava para se alimentar e fazer necessidades fisiológicas. Às vezes cochilava, mas a sanfona não parava. O forró continuava.
O novo instrumento lhe permitiu mais técnica, improvisos, convites, contratos. Conseguiu apresentações em Itabuna, Ilhéus, Camacan, Arataca, Jussarí, Pau Brasil, Mucuri e outras cidades do sul e extremo sul da Bahia. Também ampliou apresentações nos municípios do sudoeste, destacando a região do médio Rio das Contas.
Por sugestão do empresário rural Menandro Fahir arranjaram uma companheira pra Carlinhos que até então vivia sozinho. Diz ele que a sanfona ajudou no casamento. Tirava solos românticos para a mulher amada que nunca viu a face, mas sentia pelo tato, pelo cheiro, ouvia palavras amigas. Recebia carinhos…
A convivência com Ivonete durou por alguns anos, até ela morrer. O casal não teve filhos. Carlinhos não deixará descendente, só a fama de bom sanfoneiro.
Na Fazenda Palestrina, ele passa os dias em seu quarto que tem como anexo um chuveiro e um vaso sanitário. As refeições lhe são dadas por Nilzete e ele sempre agradece. Se alegra com a constante companhia da menina Isabela que tem 13 anos e é neta de Nilzete.
Quando pega na sanfona, chama a garota para lhe acompanhar no triangulo. A dupla se harmoniza, trazendo a magia da música naqueles ermos.
Carlinhos vem pelejando para que Isabela crie intimidade com a sanfona. Aprenda a puxar o fole e herde o dom que impulsiona sua vida. Alguns acordes já são tirados pelo jovem aprendiz. Talvez a única coisa que contraria Carlinhos é a invasão de ritmos alheios à tradição do autentico som nordestino no período junino.
Ele engrossa a fileira dos que pedem mais atenção ao forró com suas variantes de xote, baião e xaxado. E brada: -Tá na hora de acabar com o que não tem nada a ver com nossa tradição. Vamos valorizar o que trouxe Luís Gonzaga, Marinês, Trio Nordestino e Jackson do Pandeiro. Faço a minha parte e só toco o que é bom-.