De onde vem esse sentimento que a maioria das mulheres, mães, se não todas, em algum momento da vida já sentiram? A culpa. Culpa por não se sentir suficiente, culpa por cometer erros, culpa por não ter disponível o tempo cobrado pelos filhos, quando na verdade falta muito mais tempo para si mesma.
A verdade é que as mulheres são educadas em uma cultura que tem como base primordial, o serviço. Desde crianças recebem uma boneca para brincar de maternar, enquanto os meninos recebem carrinhos para percorrer os caminhos diversos e distantes da sua imaginação. Eles aprendem a ir e a mulher a ficar.
Somos culturalmente influenciados(a)s por crenças e ensinamentos sociais, muitos destes, estabelecidos a partir de construções religiosas que vão moldando os valores éticos e morais da sociedade. Uma das histórias que fundamentam coletivamente o imaginário da construção do feminino é a história de Adão e Eva no jardim do Éden.
Segundo a história bíblica, o casal comeu o fruto do conhecimento influenciados pela serpente, mas foi Eva quem levou a culpa por apresentar o fruto a Adão. Sabemos que não existem relatos históricos sobre este acontecimento, sendo apenas uma história figurada para explicar a partir do teocentrismo a criação do ser humano e a sua relação com Deus. E nesta apresentação religiosa, a mulher (Eva) é imputada pela culpa enquanto o homem aparece como uma “vítima” manipulada pela parceira. A história figurada não segue uma lógica do acaso, mas ocorre porque na cultura patriarcal enquanto o homem é comumente justificado, a mulher é um ser questionável, inclusive nos próprios textos bíblicos do velho e do novo testamento é possível perceber que as mulheres estavam sempre em lugares de submissão ao homem e com alto grau de exigência moral a ser apresentado socialmente.
Outra figura feminina que representa o padrão de exigência moral para a mulher é Maria, a mãe de Jesus. Apresentada como uma mãe virgem e imaculada, precisou ter sua gestação anunciada por um anjo para que sua honra não fosse manchada. Afinal, seria inconcebível para o povo daquela época, quiçá até dos tempos atuais em alguns lugares mais tradicionais, aceitar que uma mulher fora de um matrimônio e sem o respaldo de uma figura masculina, pudesse surgir grávida e ser bem vista socialmente, mais inconcebível ainda seria aceitar que o enviado de Deus para trazer uma mensagem de transformação para a humanidade nascesse de uma mulher que quebrou tais regras. Como registrar isso em um livro com alto rigor de exigência moral para as mulheres, onde mulheres adúlteras eram apedrejadas publicamente?
Já aos homens, todas essas condutas eram justificadas, sequer questionadas. Essas condutas e exigências morais estão intrinsecamente relacionadas a forma como nos percebemos e exigimos que nos posicionemos diante da vida, portanto, todas as vezes que uma mulher foge a essa regra, em algum lugar do seu inconsciente brota um sentimento de culpa, de insuficiência, de desvalor.
A culpabilização vem de fora e se acomoda não sem peso ou sem dor, por dentro. E essa mentalidade vai refletindo nesse sentimento de culpa que acompanha a mulher na função que lhe é conferida como a mais importante, a maternidade, afinal é ela, a mulher quem precisa suprir as necessidades mais importantes do ser humano que não gerou sozinha, mas que na maior parte do tempo é sozinha quem cuida, educa e se responsabiliza. E ela só ocupa essa função com a proporção que ocupa, porque o gestor não aprendeu que precisa fazer igual ou no mínimo dividir funções e investir tempo e cuidado parental em parceria com essa mãe. Então, quando há falhas ou faltas quem leva a culpa é quem mais se responsabiliza.
Esse é o dilema, a dor e a sobrecarga de muitas mães desse tempo, que cansadas de viverem em uma redoma de controle, cuidados e serviços parentais, rompem as barreiras que as limitam nesse lugar, para ir buscar outras formas de existir fora desse contexto, mas vão carregando também todas as outras responsabilidades que já possuíam, além da culpa. Tocar nessa ferida e não torná-la invisível é fundamental para que continuemos rompendo essa lógica de “cuidado” exigida na função da mulher.
O índice de adoecimento psíquico nas mulheres cresce a cada dia, muitas inclusive se sentem mal por reconhecerem a insatisfação de um lugar que é nomeado romanticamente como cuidado e virtude, mas que esconde a violência de uma sociedade que explora e desvaloriza o trabalho e o investimento psíquico, afetivo e laboral de todas as mulheres que dedicam suas vidas na educação dos seres sociais.
Um levantamento sobre a saúde mental materna no Brasil conduzido pela plataforma De Mãe em Mãe, mostrou que o sentimento de sobrecarga com frequência de cinco a todos os dias no mês foi relatado por 97% das entrevistadas, enquanto o de esgotamento foi de 94%. O percentual de mães que se sentem insatisfeitas em algum nível durante o mês foi de 91%, mesmo número relatado quanto perguntadas sobre sentir tristeza. Sobre ter um comportamento explosivo e sentir culpa depois, o índice foi de 75%. (Fonte: veja.abril.com.br).
As mulheres são maioria na sociedade e graças as lutas dos movimentos feministas, pautas como estas ganham visibilidade e mais espaços vão sendo conquistados. Mas é necessário que para além dessa luta árdua por direitos e reconhecimento à importância do papel da mulher na sociedade, haja também um movimento que convoque os homens a responsabilização de funções que não deveriam ser exclusivas a um único gênero. Se as responsabilidades fossem equilibradas, a mulher não precisaria levar tantas culpas.