De del em del ao léu, papel crepom Babel, torre de Rapunzel, seu nome é Deledel. E foi com esse apelido que Josenildo Pereira da Silva ficou conhecido na cidade. Até hoje o povo lembra dos seus aprontes e presepadas. O estilo escancaradamente malandro se não conquistou as elites conseguiu admiradores nos circuitos intelectuais. A boemia o acolhia numa boa. Filho de Quiquinha, irmão de Gói , tio de Digolino, amigo de Berekexéu, coligado de Todo Feio, comparsa de Lixo e Coceirinha, Deledel entrou na história ipiauense muito mais pela ousadia do que os estereotipados padrões de cidadania.
Passou fome, sofreu discriminações, mas não se curvou. Morava em um frágil barraco na beira do Rio de Contas. A cada enchente sua casa era invadida pelas águas. Ia tudo correnteza abaixo. Nem por isso ele se desesperava: “sentava na beira do rio e danava a fazer poesia”. A cena foi descrita pelo saudoso poeta Fauzi Maron em um dos seus versos mais célebres.
Tinha sempre alguém para acolher a família desabrigada e auxiliar na reconstrução da moradia. Deledel frequentava a Praça Rui Barbosa, fazia ponto nas portas do Cine Éden, assistia os filmes, trocava revistas em quadrinhos, discutia futebol, era torcedor do Botafogo e absorvia cultura. Muita cultura. Participou de grupos de teatro, curtiu muito rock and rool, deitou e rolou em cima dos otários.
Com ele era assim: vacilou dançou. Afinal precisava manter-se vivo, sem trabalho pesado. Desse modo reproduzia táticas de Macunaíma, Malasartes e outros heróis sem caráter. Atos de rebeldia, provocações à sociedade, eram rotineiros em sua vida. Quando aprontava e a policia chegava, a rota de fuga já estava traçada. Poucas vezes lhe pegaram.
Após as festas no Rio Novo Tênis Clube, Deledel insistia em prosseguir nos pesados embalos de sábado. Ia até a casa de Zebrinha, mas, dependendo do que estava rolando por lá, o anfitrião não lhe permitia o acesso. Ele então implorava: ”Joga as tranças Rapunzel”. Do alto do sobrado, o aristocrático artista plástico respondia: – Vá embora Delendas, este ambiente não te pertence!
Barrado no baile, o representante da plebe rústica, renegava a luta de classes e pegava o rumo dos “Dez Quartos”, onde terminava a noitada com alguma quenga de plantão. O viés intelectual fez com que Deledel editasse uma gazeta mimeografada que recebeu o nome de “LOCA DO ACARÍ”.
A publicação não passou do segundo número, já que na edição de estreia seu editor havia colocado um anuncio do Restaurante Pouso do Jacu, sem a devida autorização da dona da casa. Cheia de razão a comerciante recusou-se a pagar o anuncio. Sem êxito na cobrança ilegal Deledel deu o troco: no mais autentico estilo extorsivo de Assis Chatobriand, estampou, na segunda edição da Loca, a sensacionalista manchete: “NIÊTA VENDE GATO POR LEBRE”.A ousadia lhe custou caro. A ultrajada empresária saiu em sua caçada pelos quatro cantos da cidade. Deledel não teve outro jeito a não ser o de se esconder e tirar o pasquim de circulação.
Nem os acaris passaram por tanto aperto quanto ele naqueles dias de sufoco e exílio. Quando os ânimos acalmaram ele saiu da toca e manteve toda distancia de Niêta.
A Prefeitura de Ipiaú, logo no inicio da gestão de Miguel Coutinho, promoveu uma grande festa de micareta. Para que o evento obtivesse sucesso contratou alguns trios elétricos, artistas famosos e anunciou incentivo aos blocos, cordões e batucadas. Recursos financeiros seriam liberados para cada um deles. De olho na grana Deledel organizou “A Turma da Lazinha”.
Garantiu que o novo bloco concorreria à altura com a Turma do Funil, o Trem da Alegria e outras entidades tradicionais. Durante o período que antecedeu a folia ele promoveu uma intensa publicidade do bloco estreante. Todo dia estava na Rádio Educadora, Voz da Cidade e outros meios de comunicação. Pichou muros, distribuiu panfletos, caprichou no marketing e guardou segredo quanto às fantasias e o numero de participantes da turma.
A micareta aconteceu com muita animação. Os blocos se apresentaram em alto estilo. Cada um com centenas de foliões. Somente a Turma da Lazinha não aparecia. A pulação na maior expectativa, o pessoal da Prefeitura visivelmente impaciente. Dúvidas pairavam no ar, quando no último dia da folia, quase noite da terça-feira, Deledel botou o seu bloco na rua.
Vestido de branco, lembrando um pai de santo, com uma fita verde- amarela na cabeça, um galho de arruda na orelha, ladeado por três meninos (Boy, Ronnie Von e Digolino) que carregavam cartolinas e tendo na retaguarda a cachorra Faísca. Deledel subiu a ladeira dos Dez Quartos, desceu a Floriano Peixoto e adentrou na Praça Rui Barbosa, proclamando em alto e bom tom: “Del Silva tá na área. Ui,ui,ui, diga que ui… O séquito não teve os aplausos pretendidos, mas, em compensação as gargalhadas foram gerais. Em uma das cartolina estava escrito; “Turma da Lazinha”. Na outra o slogam: “ACARÍ, O RANGO DO FUTURO” e na terceira o agradecimento: “Este bloco tem o apoio da Prefeitura Municipal de Ipiaú”.
Não foi do que jeito que Deledel tinha anunciado nos meios de comunicação, mas também ele não deixou de honrar o compromisso com o município. Naquela altura da folia a grana do erário publico já estava devidamente desviada pra outras curtições. Cansado de viver em Ipiaú, Deledel mudou-se para Salvador. Lá conheceu uma hippie boliviana chamada “Charo” e conviveu com ela por um bom tempo. Moravam na ladeira da Preguiça e faziam constantes visitas à lendária Maria das Cobras, na encosta da Avenida do Contorno.
Depois de muita batalha Deledel conquistou um ponto próximo ao Elevador Lacerda, na cidade baixa, onde vendia fichas e cartões telefônicos. Ali, naquele pedaço, era conhecido pelo apelido de “Reggae”. Quando terminava o expediente Del transitava pelo Maciel, zoava no Pelourinho, curtia a Ladeira da Montanha, fazia presença na Misericórdia. De vez em quando dava uma esticada até a Praça da Piedade e exibia suas virtudes de poeta.
Ao encontrar alguém de Ipiaú, procurava saber das novidades da sua terra. Dizia que estava com saudades, mas não queria voltar. Uma noite lhe encontraram caído na calçada de um beco escuro. Agonizava e fixava o último olhar no prateado mar da Bahia.
De del em del, ao léu
De del em del, ao léu
Papel crepón, Babel
Torre de Rapunzel
Resolução rapel
Seu nome é Deledel
Seu nome é Deledel.
De lá, Dali, daqui!
Da Loca do Acari.
De longe se percebe
Nas Portas do Éden
Eva, Caim e Abel
Seu nome é Deledel
Macunaíma, Malasartes
Mais um herói sem caráter
Nessa parte do hemisfério.
Falando sério
Se o mistério da palavra
Fosse a pá que lavra a alma
Não seria assim ao léu.
Seu nome é Deledel.
De lá, daqui, de onde?
Dos becos underground.
*José Américo Castro / Giro Ipiaú