*Por José Américo Castro
Erguido nos primórdios de Ipiaú, quando a localidade se chamava Vila de Rio Novo, o imponente casarão da Rua Castro Alves, antiga Rua da Jaqueira, foi morada de diversas famílias e abrigou a primeira escola pública estadual da localidade.
Muita história ali foi protagonizada, muitas estórias contadas pelos seus antigos moradores em redor da grande mesa da sala de jantar. Tinha alguma coisa do romance Cem Anos de Solidão, livro marcante do escritor colombiano Gabriel García Márquez.
Não sei explicar a razão desse meu entender. Talvez pela sua linha arquitetônica em sintonia com o realismo mágico da obra. Sempre o olhei com admiração, mesmo em velhas fotografias. Via ali algum mistério, encanto, encontro com origens, testemunho de um tempo passado desvendado num repente do presente.
Chovia muito e a rua quase sempre era enlameada. No verão com estiagem prolongada era a poeira que prevalecia. De vez em quando um redemoinho levantava a poeira, arrancava chapéus e outras partículas mais leves.
O casarão foi construído por Moysés Ferreira Santos, um dos pioneiros que aqui chegaram. Ele veio de Camamu, com a missão de ocupar cargo importante no incipiente Distrito de Alfredo Martins, também chamado de Rapatição. Muito contribuiu com o crescimento do lugar.
Na condição de responsável pela Escrivaninha de Paz, cuidava dos registros de nascimento, casamento, óbito, escritura, procurações, reconhecimento de firmas e autenticação de documentos. Natural de Timbó, atual município de Esplanada, Moysés Ferreira dos Santos tornara-se por muito tempo a principal figura do lugarejo, conforme cita o historiador Clemilton Andrade, que assim traçou o perfil do ilustre personagem: “Indivíduo de estatura alta, bem nutrido, alegre, simpático, dada a representação do seu cargo”.
Moysés tinha cabeleira vasta, lisa e desde cedo branca. Sua voz e risada eram estridentes e sua verve humorística, pornográfica, dominava o ambiente. Ele teve dois casamentos.
Do primeiro, com dona Marianna, gerou sete filhos. Um deles foi seu Milton Santos, proprietário da Farmácia Plantão Noturno e marido da Dra. Dulce Barreto, renomada educadora de Ipiaú.
No segundo casamento, com a professora Evelina, foram oito filhos. Ao todo, 15 descendentes diretos. Evelina Freire foi a regente da primeira escola pública estadual da localidade. Essa escola, instalada em 1922, existiu até 1952, quando a professora se aposentou.
Teve um tempo em que a unidade de ensino funcionou em uma das salas do memorável casarão da Rua da Jaqueira, conforme relata Clemilton Andrade, em seu livro “Uma vida em Várias Épocas e Lugares”.
Na parte superior da frente da casa foi gravada a iniciais de Moisés Santos -MS-. Haroldo, único filho vivo de Moysés Santos e da professora Evelina, nasceu e se criou no casarão. Atualmente com 86 anos, ele descreve sua recordação do interior do ambiente:
“Quatro quartos grandes, um salão onde funcionava a escola, uma sala média junto do salão, um corredor pra chegar na sala de refeições onde tinha uma mesa grande, uma sala média junto esta sala depois vinha a cozinha e a despensa junto ao banheiro. Também tinha uma sala onde meu pai guardava os livros e uma rede pra descanso. Nas salas haviam portas e em todos os cômodos janelas”.
Os janelões permitiam excelente circulação de ar e luminosidade. As paredes originais foram erguidas com adobão e o teto com telhas de barro. O assoalho era de jacarandá, assim como as enormes portas, cuja cor original foi encoberta por sucessivas pinturas, informa Márcio Farias, filho de Raul Farias que morou no casarão e depois o vendeu para Jorge Brasil Montanha.
Márcio disse que Jorge fez um bom dinheiro, ao vender as tábuas do assoalho para um empresário em São Paulo. Miguel Fáscio, neto de Moysés Santos, recorda a área ao redor do imóvel: “Ao lado da sala de refeições havia uma porta que dava para um terreno extenso, onde foi construída a casa de tia Amália e existia um coqueiral. Meu avô colhia os cocos, tirava a água, colocava cachaça, selava e enterrava. Do escritório se via uma rinha para briga de galos. Atrás da casa passava o Rio da Água Branca.”
O rio ainda corre no seu leito, embora sem a pujança de antes e muito degradado. Uma rua ocupa o lugar do extenso quintal, impondo mudanças na paisagem. Outra lembrança é de que Moysés gostava de fazer palitos com seu afiado canivete. Era o passatempo predileto.
Na primeira eleição municipal de Rio Novo, em 1936, Moysés Santos foi candidato a prefeito. Concorreu pelo Partido Rio Novo Altivo e obteve apenas 10 votos. O eleito foi Leonel Dias Andrade, do PSD, com 542 votos. Em segundo lugar ficou Aristóteles Andrade, do Partido Integralista.
Moisés Santos faleceu em 16 de fevereiro de 1952, aos 69 anos. Professora Evelina fez a passagem no ano de 1970, em Salvador.
Por ser contra a revolução de 1930 que conduziu Getúlio Vargas à centralização do poder político no país e se estendeu com a Ditadura do Estado Novo (1937-1945), Moysés foi aposentado compulsoriamente. O ato foi assinado pelo interventor na Bahia, capitão Juracy Magalhães. ´
Uma das ruas centrais de Ipiaú tem o nome de Moysés Santos. Fica entre a Praça João Carlos Hohlenwerger e a Rua Castro Alves. Justa homenagem àquele pioneiro. Reconhecimento do povo desta terra.
Nos anos 50, 60 e 70, o casarão foi habitado por outras famílias, dentre as quais, podemos citar as de Descartes Lessa (genro de Moisés), Jessé Muniz, Gabriel Rios, Wilson Rocha e Raul Farias, que o adquiriu junto ao Dr. Freire( advogado e gerente do Banco Econômico).
Festas, reuniões, banquetes, paixões, sucederam no palacete. Tudo isso “perdeu-se na confusão de tanta noite e tanto dia, na profusão das coisas acontecidas”(Ferreira Gullar).
Raul Farias vendeu o imóvel para Jorge Montanha e este ali instalou um depósito da cerveja Antártica. Nos últimos anos da sua existência, o casarão não mais comportou famílias humanas. Morcegos, ratos, cupins e outros insetos foram se acomodando no lugar.
A meninada da Rua Castro Alves passava por lá, para ir tomar banho ou jogar bola na várzea do Água Branca. O baba também rolava em um campinho improvisado na lateral que divisava com a residência de Gerson Almeida. Os jovens não perdiam a oportunidade de beber água de coco e se fartar com outras frutas do extenso pomar.
Os mais afoitos adentravam a velha casa, percorriam o corredor, exploravam os quartos, faziam esconderijos, imaginavam fantasmas…
O advogado Marcelo Teixeira, filho do escritor Euclides Neto, conta que um doido escolheu o porão do casarão como morada. Ficou um tempão por lá.
O sujeito tinha a habilidade de andar em pernas de pau e caçar urubus. Fisgava as aves com um anzol. Os bichos engoliam a isca e ficavam engasgados e ele recolhia puxando a linha, depois matava, depenava, cozinhava e comia.
Para que não lhe faltasse o bizarro manjar, defumava alguns urubus e pendurava numa espécie de varal.
Anselmo Farias também dá testemunho da existência do doido e conta que o dito teria dito que só sairia do casarão quando alguém comesse um urubu com ele.
Anselmo topou compartilhar da refeição. Se fartou com aquela iguaria cozida em panela de barro ao ar livre e temperada com sal e alho.
Após a janta, o insano e misterioso personagem, cujo nome ninguém se lembra, arrumou as tralhas, colocou tudo num saco e tomou rumo desconhecido. Escafedeu-se. Ninguém mais o viu na face da terra.
Talvez isso explique a minha impressão de que aquele palacete tinha algo do realismo fantástico do romance Cem Anos de Solidão.
Macondo e Ipiaú tem suas coincidências. Semelhanças. Em algum período da década de 1980 o casarão foi demolido. No seu lugar Jorge Brasil Montanha construiu um prédio de três andares, destinado a escritórios e outros estabelecimentos.
AS FOTOS- Moysés Santos; Dona Marianna e Moysés Santos ladeando cinco dos seus sete filhos; professora Evelina, foto maior e Moysés Santos, já idoso, na foto menor.