Ficou proverbial. Quem lhe viu jamais esquecerá o gesto magnífico, o jeito profético, o olhar messiânico direcionado ao infinito do céu azul de Ipiaú. Seguia pela Rua Dois de Julho, depois de calibrar os sentidos com duas talagadas de “temperada” ferrada com jurubeba Leão do Norte. Era a medida exata para cutucar lembranças e despertar a oratória. “Naquele tempo”, discursava com voz tremula, evocando momentos marcantes da sua existência e trazendo fatos importantes da História do Brasil.
O povo lhe chamava de Joé. Nasceu em Santa Rita do Rio Preto, perto da cidade da Barra, na região do médio São Francisco. Morou em Lençóis, na Chapada Diamantina, foi garimpeiro, assistiu tiroteios comandados pelo lendário coronel Horácio de Matos, donatário daquela região. Fugiu do barulho, andou centenas de léguas, beirando o Rio das Contas, até chegar em Rio Novo. Lhe disseram que na terra do cacau poderia ficar rico. Tal sorte não lhe contemplou. Cá também tinha coronéis e jagunços. O cobiçado fruto de ouro estava longe do seu alcance, do mesmo jeito que os reluzentes diamantes. “Naquele tempo…oh naquele tempo”, repetia a frase em cada parada pela Rua Dois de Julho.
Cambaleante, apurava as vistas por detrás das grossas lentes (fundo de garrafa) dos óculos com aro de tartaruga e seguia em frente. Adiante, na Praça Rui Barbosa, nova parada, repetição dos gestos, instruções no discurso: “Pensai, Recordai, Maginai… Em sua mente vinham flashes do Estado Novo, da CLT( Consolidação das Leis do Trabalho), de golpes militares e resistências democráticas. Buscava lideranças carismáticas: “Getúlio Vargas, ó Getúlio Vargas….Tropeçava, se erguia, exibia um retrato do ditador e emendava: “Aquela Carta” No centro da praça encarava o busto, em bronze, do celebre jurista baiano. Balançava a cabeça e, talvez descobrindo coincidências, trazia o nome do então prefeito: “Dr. Oclides, Dr. Oclides Teixeira Neto!”.
Joé era meio acaboclado, de estatura baixa, cabeça chata, tipicamente nordestino. Torcia pelo Independente, apreciava trovadores, se encantava com o circo, divertia-se com os palhaços, afogava as magoas na cachaça. Deu muito duro no garimpo, derrubou matas, foi trabalhador rural, leiteiro, aguadeiro, vendedor de pão e serviçal de recados. Tinha a visão comprometida pela catarata e tudo que desejava era “um par de óculos para enxergar de perto” e a oportunidade de voltar à terra natal.
O dourado do sol poente se espalhava no horizonte, a oeste, em direção ao berço dos cristais, distante ninho dos diamantes. Sua luz refletia além, nas barrancas do São Francisco. O velho garimpeiro já tinha corrido as sete freguesias, derramado torrentes de lagrimas, emborcado o copo da “saideira”. A Voz de Rio Novo, serviço de alto falante da cidade, anunciava a hora da Ave Maria:-Cai a tarde tristonha e serena…-. Antes de se recolher ao quartinho modesto, nos fundos da casa de dona Bijuca, na Rua Floriano Peixoto, Joé apontava para o firmamento e declamava : “Deus, ó Deus, criaste o céu, as estrelas, a lua! Tanta beleza fizeste !”. O sino saudoso da velha igreja “murmurava badaladas” enquanto o errante filosofo ajoelhado rogava :”tende piedade deste pobre ébrio”. Joé levantava, enxugava as lágrimas, aprumava os passos e novamente trazia a clássicarecomendação:”Pensai!Recordai! Maginai! Naquele tempo Ipiaú era uma cidade pequena e tranquila.( Giro/José Américo Castro)